Papel em branco ( crônica )

Heitor sentou-se para escrever na mesinha de trás do sofá, quase nunca sentava ali, mas se sentiu atraído pela vista da janela  que estava há uns cinco metros dele. Da janela do apartamento ele podia ver toda acidade, as luzes pontilhadas dos postes formavam duas carreiras amareladas na subida do morro bem longe. Era um correição de estrelinhas rumando para o longe, para um lugar que ele não sabia onde ia dar na verdade, claro, Heitor passara por lá muitas vezes, mas na correria em que se submetia todos os dias nunca tinha prestado atenção a tudo aquilo que rodeava aquele lugar.

Heitor era fotógrafo no interior, e resolveu mudar-se pra capital para tentar algo melhor, sempre foi  muito ligado a todo tipo de arte, não que necessariamente ele praticasse todo tipo de arte, ele escrevia, e fotografava , maravilhosamente bem por sinal, certas vezes andava pela rua com o simples objetivo de capturar a verdade dos homens, e era incrível a competência daquele jovem para capturar a verdade alheia, as vezes me parecia quando encontrava com ele no corredor do prédio que o olhar que nos lançava era tão inquisidor como o de um pai curioso, e pior que isso é que pescava nas expressões que fazíamos tudo o que queríamos expressar.

Ele mirou mais uma vez aquelas estrelinhas nos postes ao longe pela janela e tentou se concentrar na folha de papel. Ficou estático por alguns momentos, sua cabeça maquinou durante minutos a fio, mas era mais difícil do que as outras vezes. Já havia escrito sobre diversos temas, e tinha dado a cada um de seus amigos mais próximos um poema, um conto ou crônica, ele escrevia presentes, mas as pessoas sempre notavam que havia uma pouco do que era ela nos outros. Naquela noite ele decidiu escrever um presente para si mesmo, não bem um presente, queria falar sobre o que sentia, sobre o que era, apesar de ser popular entre os amigos, e ser sempre considerado o cara da piada na hora certa, Heitor era um cara introspectivo, pensativo e possuía uma atividade interior muito maior do que a atividade social. Escrever sobre  si mesmo era o mesmo que um auto retrato, demandava acertar o tempo exato da máquina, a posição dela no tripé, e chegar a tempo de se ajeitar para não sair torto na foto, era isso ou criar algo amador, com metade do braço aparecendo  ou com flash no espelho, mas tudo que ele menos queria era que a primeira e talvez única descrição que fizesse de si ficasse marcada por uma luz branca sem sentido ou metade de um braço que apesar de seu não pertencia àquele momento.

Desistiu.

Bateu a caneta no papel, virou-a e começou a desenhar pequenos círculos, todos muito juntos uns aos outros, era um sinal da decepção consigo mesmo, mas teria outras oportunidades, afinal de contas ninguém lhe cobraria nada.arrastou a cadeira de madeira de demolição que considerava uma obra de arte feita por um amigo, possuía um estofado vermelho e vinho com alguns detalhes que nunca conseguira identificar o que era, e era isso que chamava a atenção nela, pois afinal, sempre iria descobrir algo novo naquela mistura de cores. Levantou-se, ajeitou a cadeira, bateu as mãos no encosto e encheu os pulmões de ar. Caminhou até a cozinha, abriu a geladeira, e durante longos minutos observou o conteúdo, aquilo sim fazia parte da sua personalidade, de acordo com ele, quem precisaria de um analista quando todos têm uma geladeira logo ali na cozinha. Pegou um copo, encheu de água e encostou-se na pia, cruzou uma perna sobre a outra  e bebeu quase que com cuidado a água, vagarosamente. Aquilo lhe deu uma idéia, saiu a passos rápidos da cozinha em direção ao seu quarto no final do corredor, trocou de roupa e pegou a câmera, dentro de dois minutos já estavam dentro do elevador.

Doze andares verticalmente de cima para abaixo, era isso que separava Heitor no  seu apartamento da cidade. O luz sobre a porta acendeu, era hora de descer. Logo no próximo andar o elevador parou, abriu-se a porta e uma senhora de cabelos grisalhos com uma menina de uns 4 anos  entrou naquele caixote  de aço, bem aconchegante por sinal, todo o prédio era meio assim, familiar e caloroso. A senhorinha chamava-se Maria e a garotinha Mariana, eram as vizinhas de baixo de Heitor, as vezes pela manha escutava o chorinho manhoso da menina na hora de acordar, a mãe foi para a Europa estudar na Bélgica, e o pai há muito havia mandado um cartão com cinqüenta reais. Era por volta das sete horas, Mariana certamente estava indo para uma apresentação do colégio, já que não podia estar vestida de joaninha apenas para ir à padaria.

_ Heitor, meu filho, como vai você?  – disse a senhorinha com um sorriso largo no rosto.

_ Vou bem D. Maria, não há nada que uma caminhada anoitinha não resolva, e você garota, aonde vai vestida assim?

_ Ela vai se apresentar ali naquele teatro da rua ao lado, uma festinha do colégio, peguei minha câmera para tirar umas fotos, mas aquilo é mais velho do que eu, acho.

_ Que hora começa?

_ As oito horas.

_ Se der tempo eu passo por lá, quem sabe não consigo umas boas fotos!

O elevador parou, a porta abriu e os três já estava passando pelo portão, e enquanto a pequena puxava a avó pelo braço já machucado pela idade, a senhora agradeceu Heitor e lhe deu uma balinha de hortelã, daquelas que só os mais velhos compram. Ele relutou mas aceitou e sorriu abanando a mão para a pequena que já esperava pela avó na esquina para atravessar a rua.

Heitor guardou a bala no bolso, e abriu um sorriso acanhado, daqueles que nos surpreendem, por que nós nos descobrimos sorrindo sem querer. De alguma forma aquela conversa rápida no elevador, e o cheirinho de hortelã doce que agora estava na sua mão amaciaram um pouco o seu coração para aquela noite. A probabilidade de que passasse no teatro para fotografar o teatrinho era mínima, mas não descartou a chance.

Na calçada havia algumas árvores e uns banquinhos de madeira, era um bom bairro para se morar, com muitos restaurantes e alguns pubs para ocupar a noite. Enquanto andava, alterava o foco da câmera, inconscientemente, a mantinha sempre ligada, uma boa cena não espera o fotógrafo ligar a câmera. Naquele instante, virou a esquina duas crianças puxando carrinhos de recolher papelão, apesar de não ser fotógrafo desse tipo de cena, não pode deixar de registrar que os dois corpinhos saltavam de alegria, mesmo com quilos de papelão a carregar talvez por um longo tempo.

Depois de uns 15 minutos caminhando, resolveu sentar-se na varanda de um restaurante, não pediu nada para comer, pediu uma dose de vodka, e a tomou lentamente. Após isso levantou-se e sem efeito algum do álcool empenhou-se no caminho de volta para casa. Viu há alguns metros uma pedra do tamanho de uma bola de golf, e  a rolou com os pés até que caiu na sarjeta, aquilo o fez lembrar da infância, no interior, sob o olhar da mãe no para-peito da janela da casa colonial enquanto jogava bola com os amiguinhos na rua de paralelepípedo. A mãe ainda morava lá na mesma casa, o pai morrera há alguns anos, e fazia muita falta a Heitor, ele era um bom pai, um alfaiate de primeira. Heitor ainda era jovem, tinha ainda 26 anos, até então não percorrera nem metade da vida e o que mais o satisfazia era arte, até os seus romances eram coloridos de poesia.

Heitor encostou o dedo na chave dentro do bolso para abrir a porta do prédio e olhou no relógio, eram sete horas e quarenta e cinco minutos, havia tempo se andasse bem rápido para fotografar uma joaninha voando no palco. Não remediou, tiro a mão do bolso e em um passo apertado atravessou a rua em direção ao teatro.

Quando chegou, a professora das crianças já estava apresentando a peça, era o ‘baile na floresta’ e entre leões, onças, aves e alguns insetos, estava entre mais algumas joaninhas, Mariana. Ele fotografou, e viu que em certo momento a lente da câmera encontrou os olhinhos azuis da joaninha. Apenas fotografou e foi embora, tinha ido ali para isso.

O porta do elevador abriu, Heitor avistou de longe o capacho de fronte a porta do seu apartamento e o vaso que colocara do lado, que tinha uma borda falsa, onde escondia a chave reserva. Entrou, colocou a câmera sobre a mesa de centro da sala, e foi tomar um banho. Com uma roupa confortável voltou à sala, e pegou o controle da TV, mas naquele instante viu a caneta sobre o papel em branco, na mesinha de traz do sofá. Se deu mais uma chance,sentou-se na cadeira ‘ obra de arte’, clicou a caneta e encostou a ponta no papel. Neste momento sentiu-se preenchido de algo que não estava antes de dar uma volta na vida. Talvez fosse os ares da cidade e os rostos das pessoas. Ele olhou pela janela, e avistou as estrelinhas pontilhadas em uma fileira perfeita, e mirou o papel e chegou a conclusão:

‘Nada posso escrever aqui sobre mim, nem ninguém poderia escrever sobre si mesmo, somos para nós tão brancos como o papel, e tudo aquilo que fazemos é uma estrelinha pontilhada subindo o morro da vida, sobre a nossa vida nada sabemos, suspeitamos’. Ponto final.

 

 

 

 

 

Welder Andrade

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